Era para ter sido há seis meses. Ainda assim porque havia uma pendencia entre ela e eu, pois eu a escolhi para ser minha primeira. Era para ter sido porque eu a desejei desde exato um ano atrás, no dia da corrida do Bradesco que ocorre já essa semana. Eu a imaginei. Era para ter sido, pois treinei duro para conquista-la. E por um triz não me escapou pelas mãos. Era pra ter sido porque era questão de honra pra mim. Era pra ter sido porque no ano passado tive que pegar o caminho mais curto por conta das lesões nos joelhos. E principalmente era pra ter sido porque ouvi dizer que ela era a mais difícil de todas. E é. Era pra ter sido porque eu precisava fazer a manutenção do meu título de MARATONISTA conquistado em junho em Porto Alegre. Era para ter sido sim, e no último domingo eu me vi frente a frente à ela... E me assustei.
E por
fim, após tanto tempo, nesse domingo eu escrevi o último capítulo da novela
Maratona de São Paulo 2013, que começou como citei acima a exatos doze meses
atrás, daí vocês já sabem. Retirei o kit no sábado, junto com a Vivi e o
Rodrigo, foi bem tranquilo, pois o Rodrigo deu uma ajudinha e eu passei na
frente pois nesse caso eu era preferencial.
Tinha
francamente lá minhas dúvidas em torno dessa prova, apesar de ter treinado bem
e me preparado psicologicamente. Na noite do sábado para domingo tive um início
de crise nervosa e insônia, que me fez acordar às 4h30 e daí por diante foi “um
baile” só. Levantei às 5h30 e fui me arrumar. Peguei o Alcides e o Sensei e
fomos batendo um papo descontraído até o Ibirapuera. Logo encontramos alguns
amigos e nos instalamos na tenda Eco, do simpático amigo Kleber, que sempre dá
uma força nos nossos treinos lá no Bosque. Papo vai, papo vem e o Sol resolveu
dar o ar de sua graça, sem ser convidado, diga-se de passagem ninguém o
convidou para a festa. Daí a premissa de que a peleja seria braba.
Após
concentrar-me com um pouco de Vivaldi, coloquei um metal bem alto e fui para a
linha de largada, fiquei por ali uns 5 ou 10 minutos até ver o pórtico de largada
subir. Já não havia mais aquele desespero de principiante da primeira maratona,
isso eu deixei lá em Porto Alegre, mas maratona é maratona, ou vice-versa, e no
espaço de 42.195 metros muita coisa pode acontecer. Fui indo e observando
alguns rostos conhecidos passarem, alguns não conhecidos, mas felizes também,
iam dando passos rumo à ladeira como se nada demais estivesse acontecendo ali.
Algumas vezes pensei: “Quero ver esse
sorriso na saída da USP.” Ah, a temida USP.
A
primeira vitória, e satisfação pessoal vieram logo no quilômetro 06, e abro um
parêntese para o discurso do grande amigo Itimura ao dizer que a placa dos 10
km separa homens de meninos, e a placa dos 25 separa homens de loucos. Lembro-me
muito bem nessa mesma maratona, ano passado eu tive que passar reto pela placa
que separava homens de meninos, eu era só um menino, um menino com
CONDROMALÁCIA nos joelhos, um menino que pensou jamais tornar-se homem um dia.
Olhei bem para ela e ri, com certo ar de deboche e pensei: “Hoje não. Hoje eu vou para os 42. Hoje eu vou para onde vão os
homens-maratonistas”
E fomos
nós descendo rumo à Marginal Pinheiros, dava para ver pelos prédios, sempre
imponentes que o glamour e o mau cheiro seriam nossos companheiros pelos
próximos quilômetros. Não demorou muito enxerguei a Estaiada. Estava lá
imponente aguardando todos os corredores de braços abertos, bem como no ano
passado senti um nó na garganta ao observar o mar de gente subindo, descendo e
sobre ela.
Ao passar
pela Estaiada já entrávamos no 11° km, o sol já castigava e deixava bem claro
que a essa maratona ia vender muito caro. No final de uma reta quase
interminável e uma placa escrita Ibirapuera me fez tremer... Estava
chegando. Peguei a alça de acesso e
atravessei para o outro lado da marginal, a “cor” das ruas e a arborização
familiar anunciava o inevitável. Nesse ponto tomei o meu segundo gel e segui
adiante firme e forte, pois era preciso, ainda sem dores, um pouco, mas nada
que me fizesse pensar nisso agora. Avistei a lateral do jóquei e lembrei da
Meia de Sampa, bah, como fazia frio aquele dia. Meus pensamentos iam muito
longe, ainda era cedo para focar em resistência, dores ou qualquer coisa do
tipo, era hora de “desligar”, passei pelo jóquei e ao entrar no túnel reparei a
placa cujo dois dígitos marcavam o quilômetro 35. Fiz uma conta bem rápida e
conclui que “se ao sair da USP estarei no
34° e acabo de passar pela placa de 35, vai ter um vai e vem terrível”.
Ao passar
pelo outro lado, no sentido contrário dava para ver a entrada da USP e a placa
de 22. Os quilômetros que se seguiram foram “o silêncio que precede o esporro”,
corri quase anestesiado, apesar de todo esforço que demanda uma corrida desse
porte eu quase não senti os 4 quilômetros que percorri, minha obsessão era ela.
Era chegado o momento, e eu não me fiz de desvalido.
Ao passar
pela placa de 20 peguei uma garrafa com água e fui com ela até a de 21, tomei
meu terceiro gel e mais uma vez não senti os 1000 metros que me separavam do
até então meu algoz, rival e maior desafio.
Entrei
com a cabeça erguida e firma, no lugar, a placa de 33 no sentido contrário
anunciava que oficialmente acabara de ter início a “Batalha da USP”, a “Corrida
Dentro da Corrida”. Em minha primeira maratona eu dividi a prova em três
partes, com metas diferenciadas. Em
especial um das mais difíceis era entre os quilômetros 25 e 35, pensei que se
chegasse de volta ao Gasômetro, certamente eu ganharia a maratona. Dessa vez o
triunfo seria a USP por tudo o que falaram dela, por tudo que planejei ali, pela
solidão, o sol, o vai e vem, o zigue-zague, e a chegada dos 25 km, que me fez
tomar um baque.
Cometi
dois erros bobos que quase me custou a maratona, primeiro que planejei – e
treinei – tomar um gel a cada 7 km, acontece que só coloquei no bolso 4 sachês,
ou seja, se tomasse um gel dentro da USP faltaria um lá na frente. Do ponto de
vista psicológico isso fez diferença. Outro erro que cometi é que não
considerei que no treino, com a mochila de hidratação eu tenho água sempre que
precisar, mas na prova não, isso quer dizer que passei o 28° quilometro sem
tomar carboidrato.
Antes de
entrar na Politécnica veio minha primeira injeção de ânimo, a Claudia e a Bia
estavam lá para dar uma força para os amigos. A Bia é uma guria pra lá de
especial, que mesmo com suas limitações consegue ser a corredora mais feliz e
charmosa que conheço. E a Claudia, sua mãe é uma pessoas muito simpática, que
envolve à todos com seu carisma, dei uma abraço nelas e disse que estava com
muitas dores, mas era preciso seguir.
Eu tinha
traçado uma meta pessoal, que era não caminhar dentro da USP, eu tinha apenas
corrido até agora, e não queria esmorecer ali. As dores já me consumiam, a
panturrilha queimava, e as dores na virilha apareceram sem avisar. A USP não é
tão temida a toa, ali dentro além de tudo tem a marca que separa homens de
loucos, a marca dos 25 realmente é um teste para poucos, e, principalmente
loucos. O problema é que enxergar um pórtico de chegada a essa altura é como
ver um lago azul e cristalino no meio do deserto. Sim, uma miragem. Pessoas
erguendo as mãos, recebendo seus parabéns, com suas medalhas no pescoço tomando
água fresca – e não a quente servida durante a corrida, alguns deitados no
chão, outros indo para o ônibus, na sombra tomando um isotônico e eu ali, correndo
e me restando ainda 17 quilômetros para chegar. Senti vontade de para ali sim.
Mas segui, minha batalha pessoal dentro da USP ainda estava em andamento. Essa
“marra” me custaria muito caro, talvez eu devesse ter dado uma parada para
esticar, mas não quis, e as dores aumentaram, se seguisse dentro da proposta a
“parada” seria após a placa de 34. Na passagem do 29 para o 30 tive uma agradável surpresa, meu
telefone tocou e era a Viviane, dizendo que estava me esperando lá na chegada,
junto com meus sobrinhos e minha irmã Alessandra. Muita emoção, gás renovado,
vamos em frente.
Não
demorou muito começou o ir e vir, entra em rua, sai de rua, curva para a
direita, curva para a esquerda, zigue e zague, ir e vir, entra em rua, sai de
rua, curva para a direita, curva para a esquerda, zigue e zague, ir e vir,
entra em rua, sai de rua, curva para a direita, curva para a esquerda, zigue e
zague, ir e vir, entra em rua, sai de rua, curva para a direita, curva para a
esquerda, zigue e zague, ir e vir, entra em rua, sai de rua, curva para a
direita, curva para a esquerda, zigue e zague, ir e vir, entra em rua, sai de
rua, curva para a direita, curva para a esquerda, zigue e zague, ir e vir,
entra em rua, sai de rua, curva para a direita, curva para a esquerda, zigue e
zague, ir e vir, entra em rua, sai de rua, curva para a direita, curva para a
esquerda, zigue e zague... Aquilo não terminava nunca. Ai que inferno!
E depois
disso tudo, por fim, escutei um “professor”, de uma dessas assessorias
esportivas gritar: “vamos galera, já vai
passar a placa dos 34”. Isso significava, pra mim, uma vitória pessoal, a
Batalha da USP havia terminado, e eu estava saindo vencedor. Ao passar pela
portaria tentei sorrir, mas não teve graça alguma, como citei anteriormente
deveria ter parado para alongar, talvez estivesse com menos dores, mas não o
fiz, e o preço estava sendo pago. Resolvi não parar até a placa de 34, onde por
fim, fiz um “Pit stop”.
Lá pelas
bandas do trigésimo quarto havia um posto de isotônico, tomei 2 sachês, o que
me aliviou um pouco, continuei caminhando. Correr ainda estava em meus planos?
A caminhada foi até o próximo posto de água. Tomei meu último carboidrato e
parei para alongar. Fui até a mureta próxima e fiz o que pude, as dores estavam
chegando aos limites suportáveis, ou onde achava que ainda suportaria. Após
alongar segui andando, um quilômetro era minha meta, precisava dar um tempo.
Entrei no
mesmo túnel que tempos antes alocava a placa de 35 e fui em direção à ela,
cheguei a pensar, francamente em terminar a prova andando, não havia a menor
chances de voltar a correr. Passei pelo posto de “frutas secas” e me deram
laranjas... Isso mesmo, laranjas. Achei estranho, mas aceitei de bom grado,
nessas alturas valia tudo. Os ânimos estavam repostos e tentei voltar a correr.
Tive
muitos inícios de cãibras, nas coxas e panturrilhas, pensei que ali findaria o
sonho da Maratona de São Paulo, mas ao continuar a correr senti que iam diminuindo
até quase desaparecerem. Isso é claro, graças ao meu intenso trabalho de
fortalecimento muscular. Valeu mais uma vez Clebão. Entrei no túnel Jânio
Quadros após a placa de 36. Bah, faltava muito pouco e eu precisava terminar,
seis quilômetros é muito pouco mesmo, mas não para quem já correu 36. O túnel é
terrível, outro vira-vira e pior, gente gritando. Como esse povo conseguia
forças para gritar? Deve ser adrenalina, pois bem sabíamos que ao chegar ali
era praticamente certo de que a linha de chegada seria cruzada. Fui colocando
freneticamente um pé na frente do outro até enxergar, por fim, a “luz no fim do
túnel”. Não sem antes uma subida nos padrões “fodásticos”. Par minha surpresa a
placa de 40 já poderia ser vista, mais uma ligação da Vivi e a certeza de que
independente de qualquer coisa eu precisava continuar correndo. Muitas pessoas
já eram vistas por ali dando os parabéns à todos que passavam.
A emoção
tomou conta, aquele sentimento de completar uma maratona me preencheu outra
vez, revivi Porto Alegre, que sentimento maravilhoso, como é bom ter outra vez
a certeza de que tudo valeu a pena e que mais uma história acaba de ser
composta, é a certeza de que tudo o que foi feito ecoará na eternidade. Mais
uma vez MARATONISTA.
Fiz a
curva à esquerda cujas visões principais temos do lado esquerdo o Ibirapuera e
à frente o Monumento aos Bandeirantes .
O último posto de água coincidia com a placa de 41 quilômetros ainda nessa reta
final havia muita gente se “espremendo” para que pudesse completar a maratona.
A última curva se apresentava à minha frente e ao passar pelos Bandeirantes
segui reto rumo a glória redentora. Contornei lateralmente o Ibirapuera em
busca daquele que seria meu último e mais delicioso esforço, ao avistar MINHA
FAMÍLIA me aproximei e ganhei, além de um beijo da Viviane o sorriso e o abraço
de meu filho. Foi uma das sensações mais maravilhosas que já tive. O peguei e
segui fui completar a maratona, ele ia dando uns gritos, um misto de emoção por
viver algo inédito em sua vidinha, ou por estar ao lado do pai. Duas certezas
eu tive àquela hora: a de que ele não sabia de fato o que estava acontecendo
ali e sua real importância e que um dia ele teria orgulho de mim, por tê-lo
inserido em um momento único e tão fascinante. E com ele no meu colo cruzei a
linha de chegada. MARATONISTA, outra vez! Eu a amo e odeio ao mesmo tempo. Ela me maltrata, me machuca, ainda assim não sai da minha cabeça. Quanto mais ela me bate mais eu a amo. Esse é o nosso caso de amor e ódio, assim somos nós... A Maratona e Eu.
Obrigado,
meu filho, por fazer de mim um homem tão forte. Mais uma vez eu corri por ti,
meu guri!
Nenhum comentário:
Postar um comentário